28.12.2007, Jorge Almeida Fernandes
O que está em jogo não é apenas o processo de democratização, mas um desastre para a política americana no Afeganistão e todo o Médio Oriente
O assassínio de Benazir Bhutto ilustra o lugar-comum mais usado desde há muitos anos para definir o Paquistão: "uma bomba-relógio". Os primeiros comentários não assinalavam apenas a liquidação do sonho duma relativa estabilização democrática, interrogavam-se também sobre as consequências do crime na região, e para lá dela. Sintomaticamente, a lista dos suspeitos era muito vasta. Se à primeira vista os radicais ligados à Al-Qaeda, que ameaçaram directamente Bhutto, eram os favoritos, alguns ramos dos poderosos serviços secretos militares - Inter-Services Intelligence (ISI) - não escapavam à suspeita. Não está em jogo apenas a sorte do Paquistão. "É um profundo desaire para a "guerra ao terror" dos EUA, que tinha como parte da sua estratégia na região a restauração da democracia no Paquistão, para oferecer um caminho alternativo ao extremismo", observou o analista Paul Reynolds, da BBC. A campanha pela democratização do Paquistão partiu do interior das elites, de que a rebelião dos juízes foi o ponto mais saliente. No entanto, foi persistentemente impulsionada pelos Estados Unidos: estando o regime do general Musharraf completamente desacreditado e deslegitimado, era necessário encontrar uma alternativa. Nestes termos, o objectivo primacial de Washington não era a democracia mas a segurança. Daniel Mackay, antigo responsável no Departamento de Estado, expôs na Foreign Affairs um modelo que assentava na necessidade de democratização "sem pôr em causa os interesses fulcrais dos militares" que, desde os anos 1960, exercem um papel tutelar sobre as instituições políticas. "O problema real (...) é que uma genuína democracia civil no Paquistão é uma aspiração irrealista a curto prazo."Nesta linha, o que Musharraf desejou negociar com Bhutto era uma solução de compromisso, em que ela poderia "governar", deixando nas mãos do Exército as decisões fulcrais sobre segurança e política externa. Benazir soube interpretar a vontade popular de mudança. Moveu não só as elites que pretendem afastar os militares da cena política e impor o corte radical com o extremismo islâmico que ela prometeu, mas também multidões, que aspiram a mudar a cúpula política e uma prática que desvia para a Defesa a maioria dos recursos do país, um dos principais factores de bloqueio económico.Independentemente de ainda pouco ou nada se saber sobre a conspiração, a simples realização de eleições, com a previsível vitória de Bhutto, ter-se-á tornado numa ameaça intolerável.
Aliança dúplice
A preocupação de que o analista da BBC fazia eco vai muito para lá do Afeganistão e da implantação da Al-Qaeda nos territórios de fronteira do Paquistão. Este país está situado naquilo a que se tem chamado uma "zona de fractura geopolítica", tocando a Índia, o Afeganistão, o Irão, o conjunto do Médio Oriente. É um país desigual e instável por natureza - e dotado de armas atómicas. O medo da Índia fez do Paquistão um aliado fácil dos Estados Unidos. Como dizem os especialistas, esta aliança nunca foi uma "opção ideológica". Se os dirigentes paquistaneses sempre tiveram a noção que Washington usava para com eles de uma atitude "dúplice", o mesmo pensam os americanos. Com a invasão do Afeganistão pelos soviéticos, Islamabad ganhou autonomia e tratou de promover a instalação do regime taliban no país vizinho, consumada em 1996, assim realizando o desígnio de conquistar uma "profundidade estratégica" perante a Índia. O preço foi fazer do Paquistão um território de eleição para a Al-Qaeda e outros "jiahdistas". Após o 11 de Setembro e a queda de Cabul, Islamabad perde quase tudo o que investira. O general Musharraf tem de se inclinar perante o ultimato americano. Mas, de forma hábil, consegue uma fabulosa ajuda financeira que salva o regime da bancarrota, continuando encapotadamente a manter uma estreita relação com os islamistas, seus aliados políticos.O assassínio de Bhutto destrói o quadro político idealizado para estabilizar o Paquistão, que passava por um pacto com Islamabad: neutralidade no Afeganistão e combate às milícias islamistas e redes de madrassas extremistas, que estão a "talibanizar" parte do país. Os islamistas são minoritários, mas estão na ofensiva.
Nacionalismo sem nação
A mais temida ameaça é que a instabilidade do Paquistão conduza a uma "implosão". Um analista do israelita Ha'aretz traçou há um mês o quadro apocalíptico de um 2008 dominado por uma dupla crise de proliferação nuclear, a iraniana e a paquistanesa. "Com um Paquistão em turbulência, economicamente falido, com o poder a cair nas mãos de vários grupos, incluindo elementos transviados do poderoso ISI, com conhecidos laços com os extremistas islâmicos, a proliferação nuclear é provável." É um ponto de vista israelita, mas com muitos ecos em Washington.O problema paquistanês começou na própria fundação. Foi criado como o Estado dos muçulmanos do subcontinente indiano e definido pelo fundador, Mohammad Ali Jinnah, como um Estado laico. Mas, perante a fraqueza de uma "identidade moderna", a identidade islâmica acabou por prevalecer. Para Christophe Jaffrelot, um dos grandes especialistas do Paquistão, o equívoco islâmico, o estatuto dos militares e o bloqueio da democracia provêm de um facto: o Paquistão é "um nacionalismo sem nação".
Fonte: http://jornal.publico.clix.pt/ (artigo de opinião)
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