Ao fim de 18 dias de manifestações diárias nas ruas do Cairo e de Alexandria, e de 300 mortos, finalmente o povo egípcio conseguiu derrubar o presidente Mubarak que dirigia o país há 30 anos. Foi espantoso testemunhar diariamente através dos media uma verdadeira revolução popular que provou que, afinal de contas, os muçulmanos também são capazes de lutar pela democracia e por uma vida mais digna. Esta revolução, a que assistimos quase em directo, deveu-se à conjugação do movimento pró-democracia(que foi inicialmente liderado pelos jovens, mobilizados pelas redes sociais, e que depois acabou por envolver milhares de pessoas de todas as idades) e pelos militares que tinham de evitar dois cenários catastróficos: fazer um massacre, arriscando a própria divisão, ou deixar cair o poder na rua, numa situação de caos.
Vale a pena trancrever o artigo publicado pelo jornalista Paulo Moura no jornal Público de hoje e que descreve o ambiente fantástico que se vivia ontem na já famosa praça Tahrir, no centro do Cairo.
O dia em que a multidão foi maior do que o Cairo
Fonte: Público (Paulo Moura)
Chorar é o primeiro apanágio da liberdade: e chorou-se nas ruas do Cairo. E festejou-se: "nunca sonhei que vencêssemos", diz um estudante, de 24 anos.
Venceram. Era impossível, mas venceram. A praça Tahrir estava cheia quando rebentou a notícia, sob a forma de gritos - "Alah U Akbar!" E todos souberam o que era. Não pela frase, mas pelo modo arrebatado, incandescente, como foi gritada. "Alah U Akbar!", e as multidões que ainda faziam fila nos checkpoints junto aos tanques lançam-se a correr loucas sobre a praça. Ao princípio parece uma guerra, um novo ataque dos provocadores, uma carga da polícia ou do exército, mas é apenas alegria. Violenta como tiros de canhões.
"Egipto livre! Egipto livre!", gritam grupos que correm em comboios rumo ao coração de Tahrir. "O povo venceu", gritam outros. "Nós somos o povo do Egipto". E tambores explodem em ritmos desenfreados, música, foguetes, o ulular das mulheres árabes. Há sorrisos em todos os rostos. Sorrisos estranhos, que parecem brotar de uma nascente lídima e cristalina da consciência humana.
"Estou aqui de alma e sangue", diz Zeinob, 26 anos, médica. "Estou aqui pela dignidade do meu país. Com orgulho nele. Orgulho que o mundo nos esteja a ver neste momento. Pensavam que os povos árabes eram desorganizados, incultos e violentos? Pois o que me dizem agora?"
Zeinab sabe que se seguem tempos difíceis, mas tem confiança absoluta no futuro. "Recuperámos a nossa dignidade. Depois do que aconteceu nesta praça, nunca mais ninguém nos poderá humilhar".
"Bem vindo ao século XXI"
Mahmoud Halaby, 46 anos, publicitário, acrescenta: "Somos um povo pacífico. Aguentámos este ditador durante 30 anos: querem melhor prova?" E Khaled Kassam, 23 anos, médico, diz: "Os governantes que vierem a seguir sabem que terão de tratar este povo de forma diferente. Vamos observar a transição passo a passo. Se as coisas não evoluírem na direcção certa, faremos ouvir a nossa voz. Egipto, bem-vindo ao século XXI". Mahmoud acredita que os militares vão cumprir a promessa de transformar o regime. "Com Mubarak no poder não seria possível, mas agora sim. O regime é como uma serpente. Se lhe cortarmos a cabeça, não pode sobreviver".
Tahrir nunca teve tanta gente. Chegam cada vez mais, aos milhares. Já não cabem, apertam-se, misturam-se, unem-se num organismo desmesurado e vivo, a revolver-se de júbilo, como uma crisálida em plena transformação. A multidão é maior do que a praça, do que a cidade. Maior e mais poderosa do que se julgava.
"É uma surpresa. Para mim é uma surpresa. Nunca pensei, nunca sonhei que vencêssemos", diz Ahmed Shamack, 21 anos, estudante de engenharia. "Acho que nunca ninguém acreditou verdadeiramente. Sabíamos que tinha de acontecer, mas não o imaginávamos. Por isso agora é tão maravilhoso".
Farah Faouni, uma rapariga de 23 anos e olhar negro e intenso como o de uma sacerdotisa de Ísis aproxima-se para dizer, lentamente: "Sinto o doce aroma da liberdade". E depois acrescenta: "Vamos avançar. Vamos construir neste lugar um país democrático e livre. Ninguém nos poder impedir. Este é o nosso tempo."
Um velho de barbas e longa túnica chora ruidosamente, de braços no ar. Mulheres sozinhas, perdidas na multidão, têm os olhos cheios de lágrimas. Há rostos tisnados, rugosos, sujos, chorando e rindo ao mesmo tempo. Alguns procuram desesperadamente um jornalista para lhe contar a sua vida. Como se o pudessem fazer pela primeira vez, em liberdade. Só agora se permitindo olhar para si próprios e ver-se na sua miséria e grandeza. Chorar é o primeiro apanágio da liberdade. O primeiro direito. "Eu não tenho trabalho. Não tenho segurança social, não tenho seguro, não tenho uma casa decente, não tenho assistência médica para a minha família, diz Sherif Assan, 41 anos, rodeado dos seus quatro filhos, Radua, Mohamed, Zwad e Tamema. Esta tem dois anos e está às cavalitas dele. Os outros, de 3, 4 e 6 anos, estão à volta da mãe, que tem o rosto coberto pelo hijab negro. "Não temos nada. A minha família merece mais do que isto".
Mariam, 20 anos, estudante, diz que não sabia que Mubarak era um homem rico. "Ninguém sabia, até a revolução ter começado. Diziam às pessoas: "Sabemos que vocês estão na miséria, que sofrem, mas não podemos fazer nada. Não temos dinheiro". Afinal descobrimos que Mubarak e a família têm uma fortuna pessoal de milhões. É revoltante. Ele é um homem mau, que desprezou o seu povo".Amin, 31 anos, topógrafo, diz que está a ver na praça gente que nunca tinha vindo. "Os mais pobres não aderiram de início à revolução porque estão habituados a viver de forma negativa. Para o momento, para a sobrevivência. Não acreditavam em nada. Não sabiam o que era a esperança. Mas esta revolução também é deles. É sobretudo deles."
As horas passam e a festa, na praça Tahrir, em toda a cidade do Cairo, em todo o país, não esmorece. A energia aumenta, redobra-se, como se a felicidade precisasse do seu tempo para correr nas veias.
Eles venceram. Contra todas as probabilidades, enfrentando o regime mais forte e empedernido do Médio Oriente. O que tinha as costas mais bem protegidas. Lançaram contra eles a Polícia, uma força de quase dois milhões de homens. Cercaram-nos com o Exército, que tem 500 mil soldados. Atiraram contra eles turbas armadas e enfurecidas. Disseram-lhes que estavam a trair o país. A matar a economia. "O que não pensaram", diz Amin, "é que a maioria destas pessoas não beneficia nada da economia egípcia. Por isso também se estavam nas tintas para os prejuízos na economia".
Disseram-lhes que estavam a ser manipulados pelos estrangeiros. Que Israel, o Irão e a América queriam dominar o país. Que havia agentes infiltrados a pagar 100 dólares a cada manifestante. Amin cita o Corão: "Nem que pagassem às pessoas todo o dinheiro do mundo para se amarem umas às outras, elas nunca o fariam, se não se amassem realmente".
"A internet fez-nos pensar"
Desvalorizaram-nos, dizendo que eram os miúdos do facebook. "Mubarak e Suleiman tentaram humilhar-nos dessa forma", explica Ahmed Shamak. "Mas agora sou eu que lhes digo: foram os miúdos do facebook que vos tiraram do poder".
O facebook iniciou o processo, mas a revolução tomou a sua dinâmica. "Olho em redor e não me parece que estas pessoas tenham uma página no facebook", diz Amin. Mas Samy, 60 anos, médico, admite: "Foram eles, os jovens, que fizeram isto. Olhamos para eles e vemos finalmente o que este país é. Estivemos cegos, incapazes, durante 30 anos. Este regime roubou-nos a nossa vida. Mas estes jovens vão vivê-la por nós, e isso faz-me feliz".
Ahmed Shamak diz que a internet foi importante porque abriu os horizontes aos jovens. "Os nossos media eram controlados pelo regime, e eram mentirosos. Não nos falavam do mundo, não nos mostravam a verdade. A internet permitiu-nos saber o que se passava. Ver que havia outras formas de vida. A internet fez-nos pensar".
Obama discursa no Cairo
A 4 de Junho de 2009, Barack Obama escolheu o Cairo para proferir o seu discurso dirigido ao Médio Oriente. Falou da necessidade e possibilidade da democracia e da dívida que a Civilização tinha para com a cultura muçulmana. Lembrou que, durante séculos, o Islão transportou a luz que abriu espaço para o Renascimento e o Iluminismo na Europa.
No Egipto não havia oposição. O regime estrangulou toda a semente de pensamento livre, todo o debate de ideias. Não era possível fazer nada, mas os jovens encontraram estranhos caminhos. Captaram sinais invisíveis como os místicos sufis. Puxaram pelos galões de sete mil anos de civilização. Misturaram o melhor de todos os mundos. Ouviram Umm Kulthum cantar Blowing in the wind no deserto. Ergueram a sua própria Sierra Maestra no ciberespaço. Criaram um delta de comunicação, capilar, fresco e fecundo. E venceram. A sua exigência era a mais simples de todas e por isso a mais difícil: a liberdade.
"O que está a acontecer aqui é uma coisa única", diz Farah Faouni, a sacerdotisa de olhos negros. "Talvez o mundo mude depois disto", grita ela sobrepondo-se às buzinas dos carros que enchem todas as ruas do Cairo, em filas intermináveis, com música no máximo, raparigas sentadas nas janelas, cantando e agitando bandeiras. A cidade, vista da ponte 6 de Outubro, parece agora outra, envolta numa névoa brilhante. Tudo está diferente do que era ontem. Talvez este seja um daqueles raros momentos em os que seres humanos se olham uns aos outros e vêem seres humanos. Sente-se que alguma coisa decisiva está a acontecer. Até o Nilo se revolveu no seu leito sagrado. A Esfinge olhou, desconfiada, a pirâmide de Kéops rangeu nos pedregulhos. Os jovens do Egipto exigiram o impossível. E venceram.
Fonte: Público (Paulo Moura)
E agora, com o afastamento de Mubarak, qual será o futuro do regime político do Egipto?
Será que vai evoluir, de facto, para uma democracia do tipo ocidental ou, como muitos comentadores referem, para uma democracia tutelada pelos militares, como acontece na Turquia ou na Indonésia, dois países muçulmanos mas não árabes?
Será que, com a democracia, os egípcios correm o risco de cair num regime fundamentalista islâmico, como o do Irão?
Ou será que, basicamente, vai ficar tudo mais ou menos na mesma?
É importante referir que não será fácil, como diz Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião também publicado hoje no jornal Público, a "reconversão democrática dos militares , seja pelos privilégios económicos, seja pelo facto de terem agora assumido o monopólio do poder.
Será que vai evoluir, de facto, para uma democracia do tipo ocidental ou, como muitos comentadores referem, para uma democracia tutelada pelos militares, como acontece na Turquia ou na Indonésia, dois países muçulmanos mas não árabes?
Será que, com a democracia, os egípcios correm o risco de cair num regime fundamentalista islâmico, como o do Irão?
Ou será que, basicamente, vai ficar tudo mais ou menos na mesma?
É importante referir que não será fácil, como diz Jorge Almeida Fernandes, num artigo de opinião também publicado hoje no jornal Público, a "reconversão democrática dos militares , seja pelos privilégios económicos, seja pelo facto de terem agora assumido o monopólio do poder.
A outra questão que se pode colocar é a seguinte: qual vai ser o impacto desta revolução nos restantes países árabes? Será que vai inspirar outras revoluções nos países vizinhos? Não nos esqueçamos que o Egipto é considerado por muitos como a alma do povo árabe e que esta revolução ocorre logo a seguir à da Tunísia e que em diversos países árabes temos assistido a algumas manifestações populares ainda que com menor expressão
Fonte: Público
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