Artigo de opinião de Esther Mucznik ( Vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa), publicado em 8 de Maio no jornal Público e que já foi lido, em parte, numa aula de Geografia C:
"Esta era a nossa hora histórica"
Hoje, dia 8 de Maio, comemora-se no calendário judaico o 60º aniversário da independência do Estado de Israel. Sessenta anos é a idade da maturidade e uma boa altura para reflectir no caminho percorrido, nos sucessos e fracassos do projecto sionista. São conhecidas as duas raízes do sionismo: a primeira é milenária e confunde-se com a memória histórica, simultaneamente religiosa e nacional do povo judeu. Foi ela que permitiu aos judeus sobreviverem à dispersão como povo, ligados entre si por uma religião de essência nacional, através da memória sempre viva da Terra Prometida. Arthur Koestler sublinhou esta realidade, dizendo que "não há nenhum exemplo na história de um povo que tenha sido tão perseguido em todo o lado, que tenha sobrevivido dois mil anos à morte como nação e que, entre os autos-de-fé e as câmaras de gás, tenha continuado a brindar "Para o ano que vem em Jerusalém", com a mesma incansável confiança no sobrenatural". A segunda raiz, muito mais recente, nasce na Europa no século XIX. É a Europa moderna, burguesa e liberal que fornece os instrumentos capazes de tornar o sonho messiânico em realidade: a emancipação judaica, ou seja, o pleno acesso à igualdade de direitos cívicos e políticos, o nacionalismo e o anti-semitismo moderno. O sionismo, como projecto político, nasce precisamente do despertar brutal da doce ilusão emancipadora. O incremento do anti-semitismo na Europa Central e Ocidental, a explosão dos pogroms sangrentos no Leste, complementados com uma série de leis de excepção, acusações de assassínios rituais e de deportações, tais são as circunstâncias que levam à emergência do projecto político sionista, cuja essência é a necessidade de um lar, de uma pátria própria, como condição da sobrevivência e "normalização" do povo judeu. Por uma cruel ironia da história, foi o genocídio nazi um dos principais instrumentos da criação do Estado de Israel, conferindo ao ideal sionista um carácter obrigatório, urgente, inevitável: o extermínio colectivo de um povo perante o silêncio das nações, a descoberta no final da guerra da extensão do desastre, a errância desesperada de mais de cem mil sobreviventes desenraizados cuja única esperança era fugir da Europa e das suas sombras, tudo isto confere às teses sionistas a simplicidade da evidência. Para que "aquilo" não torne a acontecer, os judeus precisam da sua própria terra. Assim o entendem as Nações Unidas, decidindo a 29 de Novembro de 1947 a partilha da Palestina em dois estados, um árabe e outro judaico. Menos de seis meses depois e contra todas as pressões internas e externas, David Ben-Gurion declarava a criação do Estado judaico: "Esta era a nossa hora histórica", escreveu mais tarde. O estado chamar-se-ia Israel. E, tal como Jacob, nunca deixaria de lutar com o anjo. No âmago do projecto político sionista está a tentativa do povo judeu de normalizar a sua existência colectiva. Tratava-se acima de tudo de viver "normalmente", em liberdade, num estado soberano, integrado no mundo das nações. "Ser um povo livre na nossa terra", segundo as palavras do hino nacional. Foi esse processo coroado de sucesso?À primeira vista, sem dúvida. O Estado de Israel tem todos os atributos de um estado "normal": um território, uma língua, uma moeda, uma cultura religiosa dominante, instituições sólidas. Mais: em sessenta anos e rodeado de uma hostilidade permanente, Israel construiu um país moderno, cuja economia está entre as mais desenvolvidas no mundo, uma democracia vibrante percorrida em permanência por intensos debates políticos, uma imprensa que é das mais livres do mundo. Construiu um Estado de direito exemplar, no qual o sistema jurídico e, em particular, o Supremo Tribunal, tem um papel de primeiro plano. Os israelitas costumam brincar com o facto de que Moisés e o seu povo deambularam 40 anos pelo deserto para chegar, afinal, à única terra da região sem petróleo nem gás. Mas talvez seja esta uma das chaves do sucesso porque, numa terra desértica ao sul e pantanosa ao norte, o principal capital sempre foi o humano: depois das dezenas de milhares de sobreviventes do Holocausto, Israel acolheu e integrou grande parte dos cerca de 800 mil refugiados judeus dos países árabes, perto de um milhão do ex-império soviético, homens e mulheres de todo o mundo falando 110 línguas, conseguindo a proeza de forjar uma identidade própria e forte. Neste sentido, a história de Israel é uma verdadeira história de sucesso. Mas noutro dos principais aspectos da "normalização" judaica e da razão de ser do sionismo - o estabelecimento de relações saudáveis com as outras nações, uma integração natural na "comunidade internacional", esse aspecto ainda hoje é problemático. Como qualquer outro país soberano, Israel integra organizações internacionais, a começar pelas Nações Unidas, é reconhecido pela grande maioria dos países, tem relações comerciais, culturais e diplomáticas diversificadas, tem um exército apto a defender a integridade do seu território e a segurança dos seus cidadãos. Mas, apesar disto, é alvo de tratamento diferente, não só de uma atenção desmedida, como de um constante julgamento moral e político absolutamente excepcional e desproporcionado, como se a cada passo tivesse de justificar a sua existência. É o lote comum a todos os estados verem criticada a sua política, até pela violência. Mas só Israel tem assistido à contestação dos fundamentos morais da sua própria razão de ser - veja-se a resolução das Nações Unidas de 1975, assimilando o sionismo a uma forma de racismo, vejam-se as constantes condenações internacionais - 635 entre Janeiro 2003 e Março 2008, enquanto a "democrática" Birmânia apenas 183, ou a Coreia do Norte, 60... Vejam-se os boicotes sucessivos a homens e mulheres das artes e das letras - grande parte deles acérrimos defensores da paz. Vejam-se ainda os apelos do pequeno führer persa ao extermínio de Israel e, acima, de tudo a identificação com o nazismo, paradigma do mal absoluto e fonte suprema de deslegitimação."Por razões misteriosas", escreve Bret Stephens no Wall Street Journal, "Israel tornou-se impopular entre o segmento da opinião pública que se considera progressista. Este é o mesmo segmento que acredita nos direitos das mulheres, dos homossexuais, numa justiça livre, na liberdade de expressão e consciência, na independência do Parlamento. Estes são direitos que existem em Israel e em mais lado nenhum no Médio Oriente. Então por que razão o país que mais defende esses valores progressistas é aquele que menos simpatia progressista recebe?" Este é, entre outros, um bom tema de meditação nestes dias de celebração.
Por: Esther Mucznik
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